* continuação do post anterior
Enquanto dirigia, falava. Falava da única coisa que lhe restava. O passado. Ele era um homem preso ao que foi, ao que passou. Tudo que tinha e que era estava lá. Num tempo que não acabou, que não foi concluído, mas que também não voltaria.
Eram 4 horas da manhã e a rua estava vazia. Havia apenas alguns vadios como ele, talvez à procura da mesma coisa. Algo que não tinha nome, nem endereço, por isso mesmo eles apenas vagavam sem rumo. Como quase não havia carros, de tempos em tempos, ele olhava pra mulher calada a seu lado. Seus olhos podiam dizer tudo que sua boca morta não era capaz de emitir. Eram os olhos mais expressivos que já havia visto. No olhar daquela mulher ele conseguia enxergar a si mesmo. Sua fraqueza e leviandade gritavam quando comparada com toda a doçura que havia nos olhos dela. E por um prazer quase mórbido de se martirizar ainda mais, continuava falando de toda podridão que havia dentro de si. Quanto mais falava, mais compreensão havia naqueles olhos cor de azeitona. Quanto mais isso acontecia, mais ele podia perceber que uma vida ruim não é motivo pro fracasso, isso deixava claro o quanto ele era fraco. E era isso mesmo que o fazia continuar falando.
Entremeava seu relato com perguntas. "- Compreende o quanto fui imbecil?", "- Eu podia ter evitado se não fosse tão cretino. Entende?", "- Você pode imaginar?" A cada nova pergunta, ela balançava o rosto, pra cima, pra baixo. Seria apenas um movimento treinado para ser repetido toda vez que alguém parava de falar e a encarava? Não. Ela podia compreender, entender, imaginar. Naquele momento, dentro daquele carro, aquela mulher podia tudo.
Não entrou na rua que o levaria até sua casa. Prosseguiu. O caminho para o único lar que ele conhecia estava ali, mudo, a seu lado. Ele continuaria até a exaustão. Rodou mais vários quilômetros, em círculo, mas sentia-se avançando. Continuou dirigindo, continuou falando.
Numa rua escura, olhou e não conseguiu ver o rosto dela. Era apenas uma sombra disforme. Sentiu-se angustiado, percebeu que precisava daqueles olhos, só através deles poderia olhar pra si mesmo. Aumentou a velocidade do carro, voltou à avenida iluminada por lâmpadas que deixavam a noite avermelhada. Ela surgiu denovo, nítida à sua frente. Sorriu aliviado, mas de repente o sorriso ficou suspenso no ar.
Ela estava chorando. As lágrimas que rolavam dos olhos dela iam ganhando tons de vermelho refletindo a luz vinda da rua. Eram lágrimas de sangue. Ele sentiu um toque suave e quente em seu rosto. Ele também chorava. Agora sim, estavam irremediavelmente unidos. Cúmplices, companheiros, parceiros. Depois de dividir todas as suas angústias, frustrações, vergonhas, agora compartilhavam lágrimas e silêncios. Ele não falava mais. Apenas dirigia e chorava.
Bruscamente parou o carro. Ela o fitou surpresa, parecia não entender o que devia fazer. De repente, balançou a cabeça, como que acordando de um sonho. Passou as mãos pelas pernas dele achando que havia entendido o que ele queria que ela fizesse. Ele fez um gesto para que ela parasse. Tirou da carteira todo o dinheiro que tinha e colocou nas mãos que ainda estavam paradas em suas pernas. Certamente era mais do que ela ganhava em 3 meses de trabalho. Era justo, naquela noite ela havia feito um bem maior do que ele tinha feito em toda a sua vida.
Olhou pra mulher que no bar mostrava os peitos através da blusa desabotoada e que naquele carro mostrou a alma através de olhos bem abertos. Sorriu e fez sinal para que ela fosse embora pra casa. Ela ficou olhando pro dinheiro que estava em suas mãos. Ensaiou um sorriso ainda úmido e saiu do carro. Ele deu a partida pensando que, ao menos naquela noite, ambos descansariam. Olhou pelo retrovisor a mulher parada na calçada. A luz vermelha refletida em sua pele alva dava-lhe ares de deusa. Continuou olhando pelo retrovisor até o momento em que não a podia mais ver. Sabia que nunca mais a esqueceria.
Ela esperou que o carro dobrasse a esquina. Só então acreditou que havia mesmo recebido todo aquele dinheiro pra dar uma volta com um sujeito estranho. Assim que o carro sumiu, abaixou e tirou os sapatos. Seus dedos dos pés sangravam. Maldita idéia de mandar arrumar o salto do sapato da caolha. Os sapatos eram menores que seus pés. No dia seguinte, tentaria vendê-los de volta pra caolha só pelo preço que havia gastado pra arrumá-los. Depois de ganhar tanto dinheiro no mole, não seria de todo ruim fazer uma bondade.
Limpou as lágrimas. Os pés ainda doíam, mas depois de tirar os sapatos a dor não era grande o bastante pra que ela continuasse chorando. Acariciou os pés pensando que a dor até veio a calhar. Provavelmente o homem tinha lhe dado tanto dinheiro por vê-la chorando. Talvez fosse uma boa idéia chorar mais vezes. Começou a caminhar de volta pro bar, se fosse rápida chegava a tempo de faturar mais um cliente na noite. Foi embora sem olhar pra trás.
P.S.: As coisas por aqui estão mais corridas do que eu havia previsto. Por isso, não consegui responder os comentários, mas ainda o farei assim que conseguir parar. Você sabem como é, não? Visitar um blog pra deixar um comentário do tipo "Ei, passei por aqui e gostei do que li." não faz muito meu estilo. Quando o assunto é comentário, sintetizar não é meu forte (nem quero que seja, na verdade). Bom, no fim de semana coloco a leitura em dia e enquanto isso deixo a continuação do conto pra que vocês não esqueçam de mim... rs. Bjs.
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18 comentários:
Saudades suas... Paz aê broto, desde já feliz ano novo e bom natal!
Eu ja havia lido esse texto e mesmo assim me deliciei, acredite!
sempre tive a impressao que ela ia terminar pegando o celular r ligando pra uma amiga. hehe
Parabens pelos 2 anos, viu? motivo de grande comemoração!!!
Feliz Natal :D
beeeeijo
Olá, querida.
Li ambos e gosto muito.
Mas queria que, onde quer que esteja agora, pudesse receber o meu abraço terno e fraterno.
Muito carinho.
Bom Natal e feliz tudo, Dani.
P.S.
Se puder, exclua os comentários anônimos do ultimo post parece ser virus.
maravilha de texto! bonito e bom!
feliz estou por compartilhar com você palavras de amor e afeto...
passando para desejar boas festas, sempre ao lado de Deus...
beijos,
do homem-menino-aniversariando-amanhã!
Amiga,
Desejo a vc um Natal abençoado e harmonioso junto aos seus, com muito amor, muita alegria e que 2010 seja um ano repleto de realizações, tto pessoais qto profissionais!
Fica com Deus...bjo!
Façamos de nossa vida uma extensão da noite de Natal, renascendo continuamente em amor e fraternidade.
Natal, noite de alegria, Canções, festejos, bonança.
Que seu coração floresça em amor e esperança! Feliz Natal! São os votos de In Natura
Que tua alma seja o cais que nele ancore toda a emoção e criatividade nesse Ano que se inicia! Boas Festas! Beijão moça legal
Ei, esse era um dos que eu queria publicar lá no jornal! Você não recebeu meu e-mail? Selecionei esse e mais outro e mandei pra você dar uma olhada e autorizar!
É a correria?
Bjooooooooo!!!!!!!!!!
Dani, voltei prá novamente te dizer: lembrei de ti.
desejo que estejas bem.
boas festas.
Olá,
já à algum tempo que não passava por aqui, vim desejar-te um Bom Ano.
É claro que para variar fiquei e li sem conseguir parar.
Um texto fabuloso, a sua ironia é deliciosa e o retrato das emoções duro e cru, adorei.
Um grande abraço deste lado do Atlântico .
Amiga Mari,
Muito honestamente ainda não li os seus textos...desculpe, é imperdoável!!!
Sabe que nesta época todo o tempo voa e não chega para o que temos em mente fazer.
Prometo voltar, só depois comentarei, como é óbvio.
Deixe-lho os meus Votos de Um Ano Novo Cheio... principalmente de saúde, amor e amigos.
Conte comigo,
Beijão
Ná
De onde esses textos tão ímpares vêm, flor? Meu Deus, eu arrepio!! rs
Você é realmente ótima.
Feliz Ano novo! Te desejo coisas lindas, amor que não pode faltar a ninguém, energia branca e positiva, paz de espírito e também paixão, trabalho e alguma dificuldade no seu caminho pra enlouquecer seus dias e te fazer ver o quão viva você está. Saúde, sorrisos, amizades verdadeiras. Que sejas verdadeira. Que sua estrela brilhe cada dia mais forte e que acima de tudo esqueça os padrões, as tantas regras, as ditaduras do que for... E seja inteira, sem se preocupar com definições ou se é certo. Viver é incerto.
Grande beijo
Uau *---*
oowuunt *-*
feliz anoo novoo
tudo de boom
Beijinhooos
Seu texto me remete às grandes solidões - que independem até do jeito de viver, mas do jeito de se ver vivendo.
A negação é a solidão.
Ou é o contrário?
Nunca sei...não sou uma pessoa lógica mas gostei do que li, de sentimento.
1 abraço.
como é vasto e interessante a mutação de uma personagem. E não falo do homem, porque, ao meu ver, embora o texto seguisse sob a admoestação do mesmo, a prostituta é que dá cores à obra.
há trechos que me remetem à uma reflexão sombria: porque sim ... um verme pode nos tocar a alma. Naquele cenário, a prostituta era nada mais que um verme ... e ela tocou o homem, quase como um plebeu que se impõe à aristocracia. E o fez sem mencionar uma palavra ...
Houve também a inversão ode valores: e tudo fica claro quando a prostituta ganha um aspecto quase divino: ela chora como a virgem maria e desce do carro envolta a uma aura ... (quase como a santa que arrebata uma ovelha desgarrada).
...
Mas como é sabido, o verme volta a ser verme (por mais santo que um dia ele se prostrou a ser). A prostituta retoma sua rotina de mariposa e como a santa, volta ao "templo da luz vermelha" para arrebatar novas ovelhas desgarradas.
Sabe, Danielle, eu sinceramente não creio em uma mudança real na vida daquele homem... e tenho por mim que ele terá uns dias "dentro de si mesmo", mas depois retornará ao seu status quo, assim como a prostitua.
é o gosto amargo da vida. Lágrimas de sangue e de admiração nossa ... (os seus leitores).
pra mim, esse conto é uma pérola.
belissimo trabalho.
Gostei da conclusão, achei engraçado cmo mudou a visão sobre o personagem principal, ficou interessante.
E tem aquela coisa, cada um vê o que quer ver.
Abraços
Logo na primeira visita fiquei impressionada pelos textos!
Parabéns pelo belo blog!
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