Dando sorte pro azar

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Como em todas as outras manhãs, abriu os olhos mas ainda não havia acordado. Levantar, ir até o banheiro e depois à cozinha era um trajeto que seu corpo já fazia no piloto automático, não precisava estar consciente. Acordar mesmo só depois de uma xícara grande de café amargo e um cigarro fumado à beira da janela enquanto olhava absorto os prédios cinzentos como o céu característico daquela época do ano. Só que naquele dia uma voz mudou sua rotina:

- Você levantou, nem me chamou. Ficou com pena de me acordar?

- Na verdade, eu esqueci que você estava aqui. Levanto meio distraído.

- Sua sinceridade me encanta.

- Não é isso que toda mulher deseja? Sinceridade.

- Entre outras coisas. Se eu não tivesse que estar no trabalho em meia hora te diria pra puxar a cadeira e tomar nota, mas não vai dar mesmo... rs.

- Se eu não chegar muito cansado do trabalho hoje, te ligo mais tarde.

- Pode deixar que eu ligo.

Ela sorriu e foi embora. O perfume ficou. A presença também, mas isso ele só descobriria mais tarde. Bem tarde.

Acabou de se vestir, pegou as chaves do carro e saiu. Enquanto dirigia pensava no dia infernal que o esperava. De repente, um carro vermelho deu-lhe uma fechada, o que o obrigou a girar com rapidez o volante pra esquerda. Conseguiu desviar a tempo de evitar a colisão. Colocou a cabeça pra fora e em sonoros xingamentos deixou bem claros os sentimentos que nutria por aquele desconhecido que quase lhe estragara o início de dia.

Sentiu um solavanco. Enquanto trocava frases de carinho com o motorista do carro vermelho, não percebeu que invadira a outra pista e que acabara de bater a frente do seu carro num caminhão enorme e fumacento que trafegava apressado. Pronto. A lateral esquerda da frente de seu carro acabava de ganhar uma bela cicatriz cinzenta. O tal monstro fumacento continuou seu caminho tranquilamente enquanto ele agora voltava a xingar o condutor do carro vermelho que, afinal, havia sido o culpado por tudo.

Chegando no trabalho, sua previsão se confirmou. Antes mesmo de colocar a pasta em cima da mesa, ouviu uma voz claramente satisfeita:

- O chefe está querendo falar com você.

Daí a saber que havia sido tranferido de setor porque a nova supervisora não ia muito com sua cara foi questão de exatos nove minutos. Tempo este muito bem aproveitado pelo chefe que fez questão de lhe dar um último conselho antes de transferi-lo:

- Você devia tentar ser mais sociável. A nova supervisora afirmou categoricamente que nunca conheceu sujeito mais mau humorado e egocentrado. Desse jeito, você não vai longe, meu caro. Os tempos são outros. Não basta só fazer seu trabalho, é preciso saber se relacionar.

Saiu da sala bufando de raiva e pensando no azar de cruzar seu caminho logo com uma dessas feministas que acham que todos os homens têm que ser afrescalhados e subservientes.

- Mas, se Deus quiser, e ele vai querer, terei mais sucesso no outro setor. - pensou alto enquanto juntava as coisas que estavam nas gavetas de sua mesa de trabalho.

Pelo menos, o chefe havia lhe dado o dia de folga: - Pra por a cabeça em ordem. - foi o que ele disse com um sorriso sádico no canto dos lábios. Já sabia o que fazer, daria um breve telefonema e terminaria aquele malfadado dia na cama com a bela mulher que conhecera na noite anterior.

- Alô.

- Oi. Você disse que ligaria, mas tirei o dia de folga e resolvi ligar. Você não imagina o dia infernal que estou tendo.

- Posso imaginar.

Percebendo que a voz da mulher não expressava muita animação. Lembrou da conversa que haviam tido naquela manhã e pensou no quão suscetíveis são as mulheres bonitas. Resolveu contar-lhe toda sua odisséia, com riqueza de detalhes, pra ver se a comovia. Ela ouvia em silêncio até que ele disse:

- Mas eu já sei o que fez com que tantas coisas dessem errado.

Pela primeira vez durante aquela conversa ela pareceu interessada:

- Bom que você percebeu. Acho que ainda pode reverter a situação. Pelo menos, fazer as coisas diferentes daqui pra frente.

- Foi tudo minha culpa.

- É verdade, todos os problemas que você me contou foram causados por você mesmo...

- Pois é, eu fui um imbecil. Não lembrei que hoje é sexta-feira 13. Foi mesmo muita distração minha, não devia nem ter levantado da cama.

13 comentários:

~*Rebeca*~ disse...

Danielle,

Falar da dor que amputa a alma é muito, mas muito complicado. Principalmente quando mancamos na hora de colocar pra fora a saudade que sentimos. Passei uma trajetória com minha mãe, lutando com uma doença maldita. Só que acredito que passamos o que temos que passar e só assim seguimos com o nosso destino. Seja aqui mesmo ou na eternidade. Amor de mãe, parece muito com amor de avó, principalmente quando somos criados todos juntos. Essa dor não passa, mas ainda bem que adormece. Falar das minhas dores nunca gostei, mas de vez em quando, quando externamos o que dói melhora um bocado.

Sobre seu texto, todo mundo se identifica com ele. Têm dias que não deveríamos sair da cama.

Adorei de coração a sua visita e espero não perder mais contato. Não sei se você gosta de selo, mas se gostar, queremos presentear seu blog com um que tem no Néctar.


Beijo grande.

=]

Rebeca

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Candy disse...

hahahahahaha
a sensibilidade masculina é um encanto.
/me contra os homens durante um longo tempo, enquanto durar meu luto.
(Y)

:*

:.tossan® disse...

O homem(nós) só pensa quando está em apuros, quando lhe falta alguma coisa. Justo sexta dia 13, cuidado dia primeiro de abril é amanhã. Belo texto!

Kari disse...

Não precisa ser sexta-feira 13, há dias em que simplesmente não deveriamos ter saido da cama. E, sabe que hoje foi um desses pra mim????

Amei o conto!

Beijos

filósofo de araque disse...

Como você já sabe prefiro comentar seus textos quando dou sorte de te encontrar online mas eu li os comentários de seus amigos e resolvi ser o cara que aparece a tempo de salvar a mocinha. A questão não é a distração dos homens muito menos um dia azarado estou enganado? A questão é até que ponto o cara vai jogando suas próprias culpas nas costas dos outros, um motorista, uma feminista, uma mulher suscetível, uma sexta 13. E é justamente essa não consciência da própria responsabilidade que vai aumentando os problemas antigos e criando novos e tudo se transforma numa imensa bola de neve que ele ainda insiste em achar que é empurrada por deuses, acasos ou destinos. A sutileza da sua escrita é marcante você vai jogando coisas como um "se deus quiser" que parece sem grandes pretensões mas que é um detalhe importante na construção do personagem pra ver se alguém te acompanha e desconfio que muitas vezes você fique meio decepcionada. Só que eu estou aqui como sempre seu herói. Hehehehe

KK disse...

não vou comentar o texto, so qria matar a saudade... não te achei no msn hj...
amei os comentários das fotos, todas vezes que as vejo morro de rir, até o fim da semana comento as comentadas e as não comentadas, rs...
fiquei sabendo q vem por 'agora', estamos ansiosos esperando...
mtos beijos e mttaaasss saudades... amamos vc...

Branca disse...

É impressionante a sensibilidade masculina, a gde maioria realmente só pensa qdo convém rss...excelente texto!


bjo!

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

É assim mesmo. Só bate o pavor quando este é verdadeiro e próximo.Belo texto!
Tenho novidades por lá.Um bom final de semana para você.
beijosssssssssssssss

~*Rebeca*~ disse...

Daniele,


Seu comentário foi de uma profundidade imensa. Ser comparada a Cazuza é pra se sentir?...ahahaha

Querida, amei saber que pegou o selo. Espero de coração não perder contato.

Maravilhoso final de semana.

Rebeca

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Zunnnn disse...

Quando será que a briga dos sexos irá acabar?

"De quem é a culpa?"

Bom...

pras mulheres... o hino de vitória é recitado em diversas oportunidades do cotidiano, até em blogs.. Como é o caso.

A culpa é de quem?

Dos homens, claro. rs
Não é?
Dando sorte para o azar de ter nascido homem.. No minimo intrigante. rs

Assumo!!!
A culpa foi minha. rsrs

Claro..rs

~*Rebeca*~ disse...

Danielle,

Cada comentário seu, eu fico mais admirada com sua maneira simples de sentir tão grande. É, a palavra une várias tribos e várias formas de pensar. De repente, algo nos alinha e ficamos pensando a mesma coisa, num mesmo ideal. Esse lado que nos prende, mesmo naquele momento que voamos alto, são as amarras que mesmo desatando todos os nós, não conseguimos desvincular. Que bom que temos uma referência e um porto, mesmo que não seja tão seguro, mas que seja calorosamente bem sentido.

Adoro seus comentários.

Maravilhosa semana

=]

Rebeca

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Carla disse...

há pessoas assim...zangadas consigo e com a vida...é pena!
beijos e boa semana

ah adorei o texto...perfeito como sempre!

Zunnnn disse...

Rs. Ta bom!
Se diz, quem diz diz? Rsrsrs