Movimento das marés

|

A água que escorre do meu cabelo, desce pelos peitos, brinca envolta do umbigo e empoça na cadeira. Há dias não escrevo uma única linha. Nem mesmo a lista do supermercado. A comida veio depois de uma breve oração via telefone. Dai-me pão, queijo, vinho e traz troco pra R$ 50,00. Amém. O circo não podia faltar, mas focas não escrevem e parecem se divertir bastante. Elas nadam, pulam, dançam e se comunicam razoavelmente bem. Verdade que enquanto a plateia aplaude e os cães ladram, as focas me parecem manter um olhar marejado, mas esse não é um momento propício a suposições metafísicas. Acabo de lembrar que jornalistas também são focas e escrevem, ao menos, tentam. Eu também tentei escrever alguma coisa nos últimos dias. A questão era até bem simples. Algumas palavras rabiscadas em bom português. "Senhor doutor juiz, dê ao meu cliente o que lhe é de direito. E se puder dar mais um pouco, não serei eternamente grata, mas provavelmente meu senhorio receberá de bom grado o aluguel atrasado. Amém... ops... Nestes termos, pede deferimento." Só que há, entre meu cérebro e minhas mãos, meandros mais intrincados que em minha própria alma, que desconfio ser imortal. Bem diferente do meu corpo que, se o coração não pulsa, o sangue não jorra, o cérebro não funciona, morre. Talvez por isso não tenho escrito. Afinal, como pode uma contenda entre seres sem razão fazer o coração pulsar, o sangue correr, o cérebro se assanhar? Faz mesmo sentido as mãos andarem encontrando afazer mais divertido. E o senhorio que espere mais um pouco que a paciência é marca registrada dos homens de boa fé. Minha fé não é das melhores. Ao menos foi o que disse a professora primária na tarde em que me recusei a adorar um amontoado de gesso. A tal mulher desfiou todo um rosário tentando iluminar a garota que tinha fé no movimento das marés, no girar do mundo, no caminhar da vida. Os anos passaram, eu cresci e continuo não levando muita fé na estagnação de altares, santos do pau oco e vasos de flores mortas que, por sinal, vêm sendo substituídas pelo plástico. Talvez a professorinha ainda reze pela aluna desviada. Talvez tenha desistido. Mas eu não. Apesar de dias e noites de mãos paralisadas, hoje, quando senti a água fria arrepiar a pele queimada de sol, o sangue correu vívido pelas veias e o corpo, que justamente por ter a consciência da mortalidade, apega-se tão fortemente a cada lampejo de vida, encaminhou-se pra velha mesa de madeira manchada, povoada por poemas inacabados, sonhos desencontrados, relatórios e requerimentos aguardando revisão. A água que escorria do cabelo agora não passa de chuvinha rala, o que respingou no chão o calor tratou de secar. A cadeira ainda está molhada, o pedido ainda precisa ser redigido, mas o papel já não parece a mulher despida, numa súplica silenciosa pra ser finalmente violada. Mais um papel foi marcado por meus devaneios vadios, outros mais terão o mesmo destino. Os clientes continuarão deflagrando suas guerras particulares, depois tornando-as públicas, eu continuarei escrevendo e as focas continuarão nadando, pulando e dançando. Os olhos continuarão marejados. Porque ninguém, homem, mulher ou foca, pode ser mais ou menos do que verdadeiramente é.

P.S.: Às vezes, as palavras parecem emperrar, daí aparece alguém que te dá um empurrão e a enxurrada te carrega mar adentro. Daí vc fica assim, à mercê do movimento da maré...

10 comentários:

~*Rebeca*~ disse...

Dani,

Esse seu texto arrepiou minhas emoções... em cada palavra lida foi um suspiro bem dado. Sabe, algumas vezes nossas palavras ficam caladas e o que elas mais querem é descanso. Não delas mesmas, mas da vida que, muitas vezes, não para para escutá-las. O que eu desejo, do fundo do meu coração, é que cada emoção feliz saia gritando dos seus dedos. Porque pra tirar o entalo do coração a alma tem que ser escutada. E quem gosta de escrever se escuta melhor.

Você é linda, sabia?

Beijo imenso.

Rebeca


-

:.tossan® disse...

Suas metáforas são poéticas além de ótimas. Bendito aquele quem te empurrou para voltar a escrever. beijo

Mário Liz disse...

um homem é um homem, uma mulher é uma mulher e uma foca é uma foca. É óbvio (mas nem tão óbvio assim).

Eu conheço homens e mulheres que são como focas. Sopram a corneta, alegram a platéia ... tudo em prol de peixe.

Criticá-los ? Eu não ... jamais!

A melhor coisa que se tem a fazer é ganhar seu peixe. Afinal de contas, qual é a foca que vive sem peixe ?

É vero: eu defendo as focas de picadeiro porque eu também amo os meus peixes, muito embora eu não seja uma foca, sou um GALO ... mas, pertencemos ao mesmo filo da comunicacação: "O Filo da Puta" ... rs porque o mundo não costuma dar valor ao nosso trabalho.

Adoro focas!

Adoro também blogs femininos. E não é na acepção "PLAYBOY" da palavra.

Eu gosto é da sensualidade com que as mulheres lidam com as mazelas da vida ... principalmente as mazelas do espírito: a dor, a falta de inspiração, o sentimentalismo, a rejeição ...

Isso sem contar na capacidade de análise que elas tem.

Mesmo um simples blog é dissecado ... aí, tem aquilo que me faz pensar:

se vc tiver leitoras, cuidado com o que vai escrever:

um haicai pode ganhar a proporção de uma epopéia...

Leo Mandoki, Jr. disse...

gostei do que li (gostei realmente das focas)..e gostei de imaginar a água sobre o teu cabelo e, na minha imaginação, essa água, antes de ir para a cadeira, tbm se escorreu pelos teus lábios. Se a sua profissão não é escritoria, então vc não tem obrigação de escrever, e deve apenas escrever qnd tiver vontade. E foi gostoso ler ouvindo a musica...acho q vc escolheu bem a combinação musica/texto para expor o teu momento
beijocas

Renata de Aragão Lopes disse...

Ficar à mercê da maré
me parece tão bom...

Um beijo,
doce de lira

Abraão Vitoriano disse...

então sou o "bom"? não mesmo, diante de você sou uma gota apenas...
você tem a palavra na mão, mexe, combina e solta as pipas e cavalos... fiquei encantado com tudo, principalmente com uns de seus textos: "recados", é simplismente maravilhoso, uma bela tradução...

espero que esse seja só o começo de uma grande amizade...

um mega beijo,
seguindo você...

do menino-homem.

Bill Falcão disse...

Sim, sim, às vezes as palavras faltam mesmo,até a lista do supermercado fica difícil. Aí, eu pego meu cachorro e saio pra caminhar pelas ruas.
Bjoooooo!!!!!!!!!

Zunnnn disse...

"E o senhorio que espere mais um pouco que a paciência é marca registrada dos homens de boa fé. Minha fé não é das melhores."

rs

Quanto a maré...
é?
Vamos ver essa dança. rs

Fico feliz que tenha gostado do video, da letra, da música...

Estou com saudades. bjs

Sobre o texto, até tinha o que falar, mas... tem muita coisa que não combina, uma delas é repetir...rs

Kaká Bullon disse...

quem dera a minha momentânea "falta de palavras" também se traduzisse com essa sensualidade e delicadeza que a sua se transforma... a mim o que tem sumido é a capacidade de concatenar as coisas, de expor... porque as palavras invadem quando menos espero, mas falta-me impulso pra guardar e mais tarde juntar e transformar todas em "sentimento exposto" ou algo que o valha... tampouco me obrigo. Sempre lindo te ler flor...

Bjins

Ana Clara Otoni disse...

Outro dia entrei no boxe,liguei o chuveiro e esperei a água cai. Quando entrei senti algo como o que escreveu, se igual, não sei...mas próximo disso. Uma felicidade imensa quando cada gota tocou meu corpo, um êxtase por estar viva. Como ao me lavar me sentisse livre, livre de tudo o que pudesse me violar. Fiquei ali me deliciando inteira de um momento ímpar e agradeci pela minha vida. Vai entender o que passa com a gente nesses momentos, acho que não acontece todo dia exatamente para que a gente possa sentir o gosto especial dele.