Uma dose de humanidade

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- Mais uma dose.

Mais uma dose de bebida, de barulho, de luxúria. Mais uma dose. Do outro lado do balcão o garçom o olhou com a indiferença com a qual aprendeu a encarar todas aquelas pessoas, bêbados, prostitutas, toxicômanos, os papéis eram sempre os mesmos, só mudavam as caras, talvez nem isso. Serviu a dose enquanto pensava se ao menos naquela noite fecharia o bar sem ter que juntar cacos de vidro e de pessoas.

- Hoje quero que me arrume uma mulher muda.

- Tem uma manca logo ali. Acho até que lá na mesa dos fundos está a caolha. Aquela que um cliente furou o olho com o salto do próprio sapato. Nunca vou esquecer a cena, a coitada descendo as escadas aos berros. Até hoje não sei se ela lamentava mais pelo olho perdido ou pelo salto quebrado.

- Provavelmente pelo salto. Uma pessoa até consegue enxergar bem com um olho só. Já andar calçada com apenas um dos sapatos é mais complicado.

- E então?

- Não quero a manca, nem a caolha. Quero a muda.

- Vou ver o que posso fazer.

- Ok, enquanto isso me traz mais uma bebida.

Sentia-se entorpecido. E, de forma totalmente contraditória, isso fazia com que sentisse tudo mais intensamente. O cheiro das bebidas baratas, das mulheres baratas. O som rouco de uma vitrola antiga era abafado pelas vozes dos homens que discutiam em volta da mesa de sinuca e dos estridentes guinchos vindos da mesa dos fundos em que, de acordo com o garçom, ele poderia encontrar a tal caolha do salto quebrado. A embriaguez que, sem que ele houvesse notado, já o dominara completamente. Som, cheiro, sensações. O entorpecimento não evitava que ele sentisse tudo ao mesmo tempo, intensamente, mas aplacava a dor. Naquele momento, ele sentia mas não sofria e isso já era muito.

- Trouxe o que você pediu.

- A bebida?

- A muda.

- Então não precisa mais da bebida. Tenho o bastante em casa.

- Ok. Até amanhã.

- Como sabe que virei amanhã?

- Você não tem outro lugar pra ir.

- Posso ficar em casa. Meu banheiro, nos piores dias, ainda é mais limpo do que esse bar.

- Sujeira não te incomoda. O que você não suporta é sua própria companhia.

- Você é um cara que sabe das coisas. Até amanhã.

Olhou pra muda que sorria com os peitos à mostra. Pela primeira vez na vida sentiu pena... de si mesmo.

Continua...

P.S.: Como eu havia avisado, em comemoração ao aniversário, vou postar alguns contos publicados aqui no último ano. Não é à toa que este será o primeiro.

17 comentários:

Eslley Scatena disse...

Que medo, você anda me seguindo hehehehe? Pq eu acho que conheço esse bar. To começando a ler Bukowski agora e esse seu conto vem à calhar!
Me empolguei agora, vou revirar o baú do Impressões qq dia desses.
Bjks =)

~*Rebeca*~ disse...

Que bom que a bíblia foi um motivo de mais alegria à sua volta. Agredeço o elogio, viu!

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E da muda, ninguém tem pena? Pergunta só pra efeito da discórdia. hhahahaha

No aguardo das sequências.

até mais.

Jota Cê

Marcelo Mayer disse...

fato! esse cara sabe de tudo, e nem preciso explicar rsss

Leo Mandoki, Jr. disse...

ainda me lembro como se fosse ontem desse texto...e o que é mais curioso...é que esse texto me fez lembrar outros textos que eu tbm escrevia...e o comentarista nº1 está certo...esse texto tem mto de charles bukowski (já li tanto dele!). Não o modo da escrita, mas sim a verdade incutida na escrita. De certo modo, foi a partir desse texto que passei a me apaixonar por vc Dany!

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Olá Mari,

Cheguei aqui pela mão da amiga Dulce.
Já me fiz seguidora e voltarei para ler tudo o que puder.
Agora não dá... mais tarde!!!
Adorei conhecer uma das suas casas.
Beijo

Paula Barros disse...

Esse texto me lembrou o Mandoki, não sei se o estilo.

Acredito que sentir pena da gente mesmo é muito ruim.

beijo

:.tossan® disse...

Claro que eu me lembro, gostei tanto que fiz um comentário diferente...Acho que foi ou não? Beijo

Stéphanie Lopes disse...

vc manda mt beem hihihi

bjs

M. A. Cartágenes disse...

Vê se num some ô doidinha... Enquanto isso, eu vou ficar de olho nesses teus contos que não conheço... Até agora, tenho gostado do que tenho lido.

Paz.

Anônimo disse...

passando so pra desejar uma boa noite

Bill Falcão disse...

Parabéns pelo niver do blog, Dani! E, pra comemorar, nada melhor do que "uma dose de humanidade", né?
Bjoooooooooo!!!!!!!!!!!!!!

Barbara disse...

Adorei a parte que fala que " o que não suporta é a própria compania".
REAL E COMUM, ISTO.
Tem gente que se rasga por não se suportar.
E se rasga mal...sem tiras e nem aproveita os retalhos.

Mário Liz disse...

meu Deus ... essa analogia do salto e do olho ... isso é de uma profundidade que eu nunca vi na vida. É intenso demais, Danielle. Vc tem o dom de captar a intensidade das pessoas.

Eu me vi em vários momentos no seu texto, não só no bêbado que clama pela prostituta muda, mas também, me vi nas prostitutas ... e eu duvido que algum leitor aqui nunca se vendeu barato...


vc capta nossas mazelas, Danielle. Sua alma tem poros e vc nos suga ... eu realmente me transportei nas linhas do seu texto.

vi o fundo do banheiro da minha alma ...

só mesmo vc para despertar tantas sensações literárias em mim ...

simplesmente perfeito.


ah sim, deixarei meu endereço para outros contatos:

email: mariolizpoeta@gmail.com
msn: mosklete@hotmail.com

abraço forte.

Melia Azedarach L. disse...

Pronto, faz tempo que não apareço por aqui...Sei que também faz tempo que não comento nada, não leio nada com calma, mas prometo que lerei.
E sei que gosta desse layout, mas em comemoração de aniversário de 2 anos do blog, acho que cairia bem uma roupinha nova.
Se quiser alguém pra empurrar a bicicleta novamente estou a postos.
Ps: sua voz é séquici!
(não podia perder o costume)

Fábio disse...

Gostei do conto, vou voltar para ber o final... Engraçado tamb´me escrevi sobre uma muda.

Abraços.

Unseen India Tours disse...

Beautiful post !! Nice video !! Thanks for sharing.

Zunnnn disse...

Faz tempo que não venho aqui pra comentar. Decidi vim hoje, nem sei exatamente porque... Mas eu to aqui.

Esse texto que já tinha lido em outra oportunidade me lembrou tanto da primeira vez como agora um livro que eu li, chamado Crime e Castigo do Fiódor Dostoiévski. Me causou muitas sensações esse livro, mas a principal foi um incomodo profundo do qual me gerou da mesma forma esse texto. Te sugiro esse livro, se ler, me comenta depois o que achou. Beijos. Matheus.