Freud e Chaplin num filme de segunda

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Parecia o clímax de um filme barato. Ela caminhava pelo meio da estrada entre os carros parados e pensava no que faria se suas suposições se confirmassem. Um cigarro. Era melhor acender um cigarro. Tudo pareceria menos trágico se na hora da verdade ela estivesse fumando. O cigarro fazia com que ela lembrasse que a morte e o prazer são companheiros de viagem. Tudo que é bom mata, o que varia é o tempo. O tempo. Ela se lembrou que tinha visto a previsão na TV. Chuva o fim de semana todo. Se aquilo fosse mesmo cena de filme começaria a chover.

Uma coisa era certa. Tinha mesmo ocorrido um acidente. À distância já dava pra ver o ônibus atravessado na pista. Mas e o carro? Está certo, ela sofria de considerável redução auditiva depois da terceira dose. Só que dessa vez tinha certeza. Ela até pediu pra que o policial repetisse. A estrada estava bloqueada. Tinha acontecido um acidente, um ônibus e um carro. Um homem preso nas ferragens do carro. Foi isso que ele disse. Ela tinha certeza.

Continuou caminhando. As pernas pesavam. Sua mãe vivia dizendo que ela precisava fazer exercícios físicos. Sua mãe. Ela precisava retornar suas ligações, mesmo que fosse pra ouvir de novo a palestra sobre os males do sedentarismo. Acontece que, nesse caso, o motivo do peso das pernas não era cansaço. Era medo. E se fosse ele o tal homem nas ferragens?

Pensou na última vez que o tinha visto. Menos de uma hora atrás. O cabelo despenteado, a barba por fazer, a calça surrada. Um ar de desleixo que o deixava ainda mais atraente. Era como se estivesse escrito em sua testa que ele precisava de uma mulher que cuidasse dele. E havia candidatas, aos montes. Em uma das mãos, um copo, na outra, a chave do carro. Ele perguntou se ela queria ir embora. Disse que seu cachorro, Freud, andava sentindo falta dela. Um cachorro, era o que ele era.

Ela já sabia o final daquela história. Dormiria com ele, seria incrível. Ele a faria dormir com afagos nos cabelos. Ao amanhecer, acordaria com o cheiro bom do café que só ele sabia fazer. E era só. Ele sumiria de novo até a próxima vez que tivesse vontade de dividir sua cama com uma mulher que ao menos soubesse quem foi Freud. Um cachorro, era o que ele era.

Ela não foi embora com ele. Cumpriu a promessa que havia feito pra si mesma no dia em que acordou ao lado dele e teve vontade de ficar ali pelo resto da vida. Ela amava aquele homem. Fato consumado. Levantou-se, lavou o rosto e prometeu que aquela seria a última vez. A última vez. Será que era ele o homem preso às ferragens?

Acendeu outro cigarro. Agora já podia ver o carro. Na verdade, podia ver o que havia sobrado do carro. Um monte de ferro retorcido. Um corpo de ferro com cabeça de gente. O tal homem estava com o corpo todo encoberto pelo carro amassado, dele só se podia ver a cabeça que pendia de lado. Era ele? Ela não sabia, precisava chegar mais perto. As pernas criaram vida, ou morte. Elas simplesmente não se moviam mais. Ela estava paralisada.

As pernas imóveis. A mão esquerda tremendo. Seria nervoso? Era o celular. Vibrava, ansioso, como se soubesse a gravidade da situação. Devia ser a amiga que deixara sozinha no carro quando ouviu do policial o relato sobre o acidente. Saíra do carro sem dizer uma palavra. Apenas viera caminhando solitária por aquela estrada cheia de carros parados e pessoas atônitas.

- Alô.

- Freud não vai me deixar dormir. Ele sente sua falta. Cachorro. Eu sou um cachorro, mas também sinto sua falta. Eu preciso te ver. Onde você está?

- Eu? Eu estou indo a seu encontro.

- Você disse que não queria mais saber de sexo, café e muito menos de cachorro? O que te fez mudar de idéia?

- Um monstro de ferro com cabeça de gente.

- E o que esse monstro te disse a meu favor?

- Disse que era pra eu parar de me poupar e viver sem tanto medo de sofrer. Disse que a vida é tão inevitável quanto a morte.

- Espera aí. Foi Chaplin que disse isso. Não importa. Você vai demorar?

- Não sei. Preciso perguntar ao monstro.

- É justo, afinal foi ele que te trouxe de volta à vida. Minha vida.

Ela desligou e deu mais alguns passos em direção ao destroços de carro e gente. Não queria mais saber quem era o tal homem. Preferia mesmo pensar que estava diante de um monstro de ferro com cabeça de gente. Mas já que estava ali, decidiu perguntar aos policiais se ele estava bem. Bem? Claro que ele não estava bem. Está certo, perguntaria só se demorariam a liberar a estrada.

Aproximou-se mais do local. Já estava a poucos metros. Caminhou até os policiais tentando não olhar pro monstro de ferro. Ficou sabendo que o resgate já estava a caminho, mas não tinham previsão de quanto tempo demoraria pra liberarem a passagem. Agradeceu e começou a retornar pro seu carro quando ouviu o início de uma conversa:

- O resgate já está vindo. Vamos tirá-lo daí. Você precisa ficar acordado até eles chegarem. Fala comigo. Qual é seu nome?

- Charles. Meu nome é Charles.


O nome do monstro era Charles. Voltando pro carro ela olhou o relógio. Duas da madrugada. Já era segunda-feira. Não pôde evitar um sorriso. Aquele seria mesmo um bom final pra um filme de segunda.



6 comentários:

Leo Mandoki, Jr. disse...

Mto bom!!!
eu particularmente adoro o nome Charles.
adoro mulher fumando. E o meu café é horrível. Meço a autenticidade de uma mulher qnd lhe ofereço o meu café.
Adoro qnd vc escreve! sabe pq? pq me dá vontade de ser seu personagem.
beijosssss

Leo Mandoki, Jr. disse...

só agora é que li seu comentário!!!
padeiro sim! mas padeiro de sorte viu!!
faria tudo pra trocar de posição com esse padeiro. Vai pra casa dele éh? então mostra pra ele o qnt vc é MULHER! pra ele se sentir um carinha de sorte
beijossss

Unknown disse...

oi
pois é apareci, dei o ar da graça ou o ar sem graça rs, mas enfim, atualizei o blog com três posts de coisas diversas.
quanto aos meus passos, bem eu optei por preserva-los por enquanto, qualquer dia agente se encontra e se fala dai eu te conto mas aqui eu deixo minha escrita mais imparcial e menos intimista, são mudanças, boas ou não elas tem de acontecer.
um dia agente se vê nestes caminhos virtuais, abraços saudosos!
bjs

Anônimo disse...

voltei!!!!!

meu comentário de hoje nao é de expressão nem de imprensão, mas sim de retorno e de agradecimento...

vc teve paciencia comigo!!

haha obrigado pelo comentario lá...

dps poasso aki e comento o texto, já dei uma pescada... bem, acho q vou gostar

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Melia Azedarach L. disse...

Por que me fez pensar numa pessoa e num vazio que fez cá dentro.
E essa gripe que não passa, trabalhei tanto e só sei dormir para sonhar com a tal pessoa que me fez pensar em pegar o telefone, ligar, acordá-lo em plena segunda, só para dizer que aqui está chovendo, que aqui ficou frio desde que ele se foi a alguns meses, ficou só esse oco, sentimento de vontade, mais desejo, quase desespero por ele, por mim, por nós, contorcidos, conversando de nada, falando de nada, esquecendo de tudo lá.
Só pensando em como você me toca as vezes, com um simples texto, me toca a alma, cutuca a alma até o fundo, assim, só assim, mas nem sei se é "só" mesmo, acho que é mais tudo.

Beijos querida!