O cárcere da bela vida

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Há dias procuro um livro que comprei na última viagem e não sei onde guardei. Acontece que toda vez que começo a mexer nos meus armários, encontro uma outra coisa que acaba me fazendo esquecer o que eu inicialmente estava procurando.

Ontem, numa dessas expedições em busca do livro perdido, encontrei algumas "preciosidades". O Schopenhauer que ganhei de um amigo (que, por sinal já me xingou algumas vezes porque ainda não acabei de ler o livro), bilhetes sem sentido (agora), poemas rabiscados em guardanapos, números de telefone anotados que não sei mais quem me deu, textos passados por colegas que esqueço de levar pro escritório... Graciliano Ramos.

De repente, abri uma gaveta e lá estava ele. Memórias do cárcere. Pronto, acabava de abortar a expedição. Encontrar Pessoa ficaria mesmo pra outro dia. De repente, fui invadida por uma avalanche de pensamentos.

Inicialmente, me veio a lembrança do momento em que li Memórias do Cárcere. Eu acabava de mudar completamente de rotina. Momento conturbado, em que ainda me adaptava às diferenças culturais, climáticas, etc, etc, etc. De certa forma, ler um bom livro me fez lembrar o quão relativas são essas questões de "meu lar", "meu lugar". Lembrar que não é necessariamente (e nem principalmente) no mundo exterior que me encontro, me localizo. Daí em diante me vieram todas as divagações acerca das minhas teorias sobre as relações humanas, das quais pouparei meus queridos visitantes... rs.

Logo depois, me peguei pensando no prazer que foi reencontrar Graciliano depois de Vidas Secas. Memórias do cárcere me tirou aquela impressão aborrecida. Ousadia chamar um clássico de entediante? Ignorância? Mau gosto? Que seja. Decididamente Vidas Secas não está incluído na minha lista de prediletos, nem de mais ou menos, por sinal... rs.

Mas, voltando ao assunto, Memórias do cárcere tocou fundo em mim. O tema. A visão fatalista, a crítica ferina, o sarcasmo contundente de Graciliano. A postura debochada diante de uma situação absurda. Absurdamente verídica. A verdade sem demagogia, sem a velha falácia da total aversão brasileira à violência.

E os pensamentos não pararam por aí, acabei me lembrando do filme "A vida é bela". Aquele mesmo que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro derrotando o enfadonho "Central do Brasil". Benigni e sua forma romanceada de falar do holocausto. Guido e sua visão combativa diante das atrocidades. É isso, à sua maneira, Guido lutou contra o exército alemão, contra a realidade, contra tudo e todos por uma só causa, sua família. A inocência do filho. O resgate da esposa. Suas armas: criatividade e fantasia. Fantasia.

Inevitavelmente, estava criado o paralelo entre as visões de Graciliano e Benigni diante da barbárie. Algumas coisas em comum. A semelhança entre as situações é gritante: ditadura, holocausto. Além disso, nenhum dos dois lutava por um ideal. Graciliano nem sabia ao certo o que era comunismo. Guido não almejava matar Hitler. Ambos estavam "perdidos" numa guerra alheia. Lutavam pela sobrevivência (embora seus conceitos de sobrevivência fossem bem distintos).

Graciliano queria apenas continuar vivendo. Talvez nem fosse um querer assim tão intenso, talvez fosse só um costume, continuar resistindo. Guido não precisava apenas não morrer pra viver. Ele precisava sonhar, imaginar, e ainda fazer sonhar, fazer imaginar. Guido amava uma mulher, protegia seu filho, tal como seu pequeno príncipe. Graciliano convivia com sua mulher, assim como com os móveis de casa, talvez nem lembrasse os nomes dos meninos.

As diferenças entre os dois eram mesmo muitas e mais marcantes que as semelhanças, mas sentada no chão, entre vários pedaços de papel amassado, Memórias no colo, Vida na cabeça, o pensamento mais forte que surgiu (e ficou) foi em relação à saída que eles encontraram pra sobreviver.

Graciliano escrevia. Guido sonhava. E assim eles iam sendo tratados como animais e vivendo como homens. Ambos sobreviveram, cada um à sua maneira, a situações extremas. Imaginar... escrever... sobreviver... Guido, Graciliano, eu... você?

14 comentários:

Juliana disse...

realmene mexer nas coisas do guarda roupas é quase abrir uma caixinha de lembrançar, eu tambem sempre me envolvo com alguma coutra coisa e a idéia inicial fica pra tras!

Beijo

Leo Mandoki, Jr. disse...

putz!!! tou me escangalhando de rir aqui!!..e eu que pensava que só bolsa de mulher é que era desarrumada!!...eita...imagino como deve ser esse seu armário...é mais fácil encontrar navio perdido no triângulo das bermudas do que algo dentro desse seu armário viu!!!
eheheheheheh

Algo de mto misterioso acontece entre nós os dois. Se eu te contar vc nao vai acreditar: esta semana comecei a ler o livro Infância...sabe de quem é? Graciliano Ramos!!!
e sabe que mais?? Não senti nenhuma dor de corno qnd o A Vida é Bela venceu o Central do Brasil...não sou nem nunca fui obsessivamente abrasileirado! Sou é a favor do que é bom!
Só uma cabeça inteligente e sensitiva como a sua seria capaz de escrever e relacionar A Vida é Bela com Graciliano Ramos....
me dá uma angústia ver vc passando por lá...duas vzs e me dizer que não tem nada pra comentar...angústia pq? Pq agora qnd escrevo...penso em vc...te imagino....te imagino reagindo a uma frase...e a frase acaba saindo em função disso...
gosto de vc viu!! gosto msm

Elcio Tuiribepi disse...

Só rindo, as vezes me pego fazendo isso e o primeiro objeto da procura fica a ver navios...rsss
Acho que isso é bom sinl, afinal a surpresa supera o pretendido.
Quanto ao filme A vida é bela, apesar da personagem se confundir com ele mesmo na vida real, o filme tem momentos marcantes, engraçados apesar de toda a situação e que nos faz pensar em como deveríamos levar a vida em ceos momentos. Gostei de Central do Brasil também, mas concordo que o ritmo era um pouco devagar. Hoje o que fica com certeza é a certeza da leitura, seja ela como for...Tenho Memórias do Carcere...muito bom...boa semana para você...um abraço

Anônimo disse...

“Inicialmente, me veio a lembrança do momento em que li Memórias do Cárcere. Eu acabava de mudar completamente de rotina. Momento conturbado, em que ainda me adaptava às diferenças culturais, climáticas, etc, etc, etc. De certa forma, ler um bom livro me fez lembrar o quão relativas são essas questões de "meu lar", "meu lugar". Lembrar que não é necessariamente (e nem principalmente) no mundo exterior que me encontro, me localizo.”

Este trecho me fez lembrar o momento no qual estou vivendo, talvez eu precise despertar a consciência de que o “meu lugar” só existe mesmo na minha cabeça, mas na vida precisamos de tempo pra perceber que os vínculos não são eternos e que às vezes precisamos romper certos laços para criar outros tão bons quanto, espero que a razão venha ao meu encontro para que eu possa amenizar as emoções que me prendem as pessoas e lugares que um dia fizeram e fazem parte do meu cenário de vida.

“Graciliano escrevia. Guido sonhava. E assim eles iam sendo tratados como animais e vivendo como homens. Ambos sobreviveram, cada um à sua maneira, a situações extremas. Imaginar... escrever... sobreviver... Guido, Graciliano, eu... você?”

Tenho feito mesmo como Graciliano: “escrevendo para sobreviver”, talvez para fazer passar mais prazerosamente o tempo de modo que a vida se torne mais natural e que eu consiga por fim esquecer que o “meu lugar” de fato não existe, talvez exista o meu “mundo interior” e toda transformação que eu viva e queira viver deve acontecer dentro dele e não fora dele.

Hoje sem querer foi você que me fez refletir sobre estas coisas tão confusas dentro de mim e que na verdade a confusão quem faz somos nós mesmos, pois as coisas elas já existem por si só. Obrigada por isso!

Em breve estou de volta a vida noturna, acho que semana que vem, abraços saudosos!

meus instantes e momentos disse...

Ótimo texto, parabens , gostei daqui,
Maurizio

Vivian disse...

...que coincidência entrar aqui
e encontrar Graciliano Ramos,
quando fiz uma post dele
ontem tbm.

adoro este escritor.

e como gemeniana eu entendo bem
estas mudanças de rota...rss
quando vamos fazer uma coisa, e num piscar de olhos já estamos
nos intressando por outra.

bjus

Carla disse...

Relembrar as palavras de Graciliano em contraponto com a beleza do filme "A vida é bela" é um raciocínio que me soube bem fazer...obrigada por permitires isso com as tuas palavras. que da "desarrumação" do teu armário saiam sempre preciosidades como esta!
beijos

Anônimo disse...

Eu! rs

hehe é... como te disse ontem,tbm gosto dos personagens menos utópicos e mais praticos... os que em situações adversas lutam não por ideais,mas por si mesmos...e isso não é puramente egoista,tem um q de romantismo tbm...rs

Quanto aos filmes,prefiro nem comentar muito...quando desembesto a falar,eles vem numa torrente que nunca acaba...
(sem contar uma leve fadiga,rs)
Mas que a estória do cara de O pianista tbm é outro desses casos,isso é...rs

Às vezes me pergunto se não é mesmo sempre assim... se não estamos sempre procurando algo e nessa busca incessante,sem perceber,tropeçamos em algo ainda melhor aos nossos olhos...

Bjin querida,te adoro,viu?

Anônimo disse...

PS: adorei o titulo...rs

Anônimo disse...

Não me dói mais visitar seu blog... comecei a vê-lo como você me falo, rs...
Mas continuo impressionada, mas agora é com o dom que vc possui, que coisa maravilhosa são seus textos. Incríveis! Fico sem palavras pra expressar... Os jogos que vc faz com as palavras, com as ideias, nossa... (Eu realmente sou uma negação pra isso, rs.)
Amo te ler.
Amo você!
Já estamos com mtas saudades.

Anônimo disse...

comentando seu comentário no ultimo post meu:
encontrei esta frase por acaso, talvez ela explique muita coisa:

"ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão". Paulo Freire

acho que é mais ou menos por aí, rs

é, voltar vai ser bom, pense numa ansiedade imensa, pense numa pessoa contando os dias e riscando o calendário que nem presidiário contando os dias pra sair da cadeia, pois é, esta pessoa sou eu, é rídiculo porém real, rs

bom fim de noite pra ti, amanhã eu volto aqui, isto é uma ameaça, rs

bjs, saudades :)

:.tossan® disse...

Muito iteressante! Na semana passada revi o "A Vida é Bela" gostei mais do que antes não sei a razão.
Perder um livro, ah vc deve ter escondido naquela gaveta pra ninguém ler antes rsrs.... Eu já disse que os teus textos são ótimos? Bj

Bill Falcão disse...

Schopenhauer é um dos meus tops da Filosofia, Dani!
Tirando, é claro, a parte em que ele analisa (mal) as mulheres hehehe!!!
Bjooooooooooo!!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Nossa Helen, lendo seu texto me reportei ao tempo em que vivi distante do que eu julgava ser meu lugar. Quando eu me exilei no Pará, num local onde literalmente Judas perdeu as meias (pois as botas largou bem antes) eu me vi perdida, a princípio, mas...com o tempo, fui me adaptando à nova cultura e a experiência foi realmente compensadora, enriquecedora mesmo e... sabe o que me ajudou a tornar os dias menos penosos? A leitura...lá, eu devorei livros com uma avidez impressionante (rsrs) e vi que o tal "meu lugar", como bem disse a Ana, tá mesmo é na nossa cabeça. O Graciliano, em Memórias do Cárcere, escrevia para não sentir passar o tempo naquele penoso local. Eu, lia...e o lugar nem era tão ruim, aprendi a amá-lo, com sua gente, seu folclore, sua beleza.
Também concordei com o OSCAR de melhor filme estrangeiro para A Vida é Bela...lindo! Quanto ao enfadonho Central do Brasil, não senti nem 1/10 da emoção que senti no do genial Benini. Brasilidade também não é o meu forte e como disse o Léo, o bom roteiro é que fala mais forte.
Adorei o seu texto.
Bjsssss