Que vida haverá depois que o ponteiro mudar de posição?

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Chega, fim do dia. Já estava trabalhando desde às 11 da manhã, não parara nem pro almoço. Estava exausta. Desligou o computador. Cadê a chave do carro? Alguém bateu na porta. O chefe. Mau sinal. Provavelmente, o dia de trabalho ainda se estenderia por mais algumas horas. Engano. Dessa vez a notícia era ótima. Seria promovida. Decisão por unanimidade entre os sócios do escritório. Ganharia quase o dobro e uma sala com vista pro parque.

A promoção, somada ao casamento que se aproximava, era motivo suficiente para uma grande comemoração. Pessoas foram ligando pra pessoas e, de repente, o happy hour da sexta havia se transformado numa grande festa, acabava de ganhar uma despedida de solteira.

- Alô.

- Querido, estou ligando pra desmarcar nosso jantar. Fui promovida. Depois te conto os detalhes. O pessoal aqui do escritório vai aproveitar a deixa e fazer uma despedida de solteira.

- E eu não vou ser convidado pra comemorar sua promoção?

- Você é o noivo. Não pode ir a minha despedida de solteira.

- Que bobagem, querida. Coisa mais provinciana.

- Comemoramos minha promoção de outra forma, só nós dois, ok?

- Hummm, agora sim, o argumento foi convincente o bastante. Amanhã?

- Amanhã.

- Espera um pouco. Casamos na semana que vem, você vai até ter uma despedida de solteira. Mas você não disse sim.

- Como assim?

- Eu te pedi em casamento, você pediu um tempo e semanas depois falou que aceitava minha proposta. Nunca disse "Sim, eu caso."

- E depois eu que sou provinciana... rs.

- Eu sou um homem romântico, é isso.

- Façamos o seguinte, amanhã você faz denovo o pedido e eu respondo como manda o figurino, está certo?

- Combinado.

- Preciso ir. Até amanhã, querido.

- Amo você.

- Eu também.

O lugar escolhido foi uma boate próxima a sua casa. Ótima escolha, assim deu tempo de passar em casa, tomar um banho e deixar o carro. Seria mesmo mais prudente ir de táxi.

Chegou no lugar combinado, já tinha ido lá algumas vezes. No primeiro piso havia um bar onde o pessoal dos escritórios próximos ia pro happy hour. Estava lotado, muitas pessoas conhecidas. Como haviam avisado tanta gente tão rápido? Não importa. Estavam todos ali, ela estava ali, por um único motivo: comemorar.

Algumas horas e muitas margueritas depois, ela começou a se sentir tonta, sufocada. À essa altura, as vozes já estavam muito altas, a pouca luz a fazia sentir ainda mais desorientada, o ouvido "zumbia", a cabeça girava. Precisava sair dali. Precisava respirar.

O ar frio do início da madrugada foi como um abraço aberto que vai se distanciando, te fazendo caminhar em busca de um pouco de alento. Quando se deu conta, já estava há uns quinhentos metros da boate. Era perigoso andar sozinha a uma hora daquelas. O mais certo era voltar. Continuou caminhando. De repente, uma sensação de liberdade a invadiu. Ela se sentia estranhamente feliz. Sorriu. A primeira lágrima rolou enquanto seus lábios ainda estavam abertos. Sentiu o gosto da lágrima.

Por um segundo, teve um lampejo de lucidez. Aquela lucidez brutal, implacável, reveladora. Uma lucidez que só os loucos, as crianças e os bêbados podem alcançar. As lágrimas agora rolavam feito torrente. Ela estava sozinha no meio da rua, era tarde, estar ali era perigoso e solitário. Ainda assim se sentia inteira, em casa, à vontade, como há muito tempo não se sentia. Era duro, cruel até. Mas aquele era mesmo o único lar que conhecera. O incerto, o perigo, a solidão.

A verdade é que aquela coisa toda de preparativos de casamento, escolha de vestido, padrinhos, enfeites, aquilo não tinha nada a ver com ela. Viver tudo aquilo era como sonhar. Pode até ser agradável, quase real, mas, bem no fundo, você sabe que é só fantasia, sabe que uma hora ou outra você vai acordar. Ela havia acabado de acordar. Um som. O despertador? Não, uma buzina.

- Ei, não acha perigoso andar sozinha a essa hora?

- É. Eu poderia de repente dar de cara com um desconhecido com intenções escusas. Espera, eu acabo de dar de cara com um desconhecido com intenções escusas. O que devo fazer, correr?

- Muito engraçada. Mas sua cara não está das melhores. Por que você está chorando?

- Primeiro achei que você podia ser um tarado ou ladrão. Agora já estou desconfiando de que você é da polícia.

- Então pode confiar em mim e me deixar te dar uma carona.

- Muito pelo contrário. Você não lê jornal?

- Nem você pelo visto, senão não estaria aqui sozinha.

- E você? Não tem medo? Eu também poderia ser uma "maníaca sexual". Ou então estar me fingindo de pobre coitada perdida só pra atrair e assaltar candidatos a príncipe encantado.

- Bom, a idéia de você ser uma maníaca sexual não deixa de ser bem interessante. Quanto a me roubar, aposto que o que tenho na carteira não paga nem o lenço que você usa.

- Você é realmente divertido, mas preciso ir.

- Espera. Não vai. Embora você não queira admitir, eu sei que está precisando de ajuda. Entra, a gente conversa e eu te deixo em casa.

Ela desviou o olhar. Pôde ver mais adiante o portão de seu prédio. Agora realmente se sentia diante de duas opções. A escolha não seria entre entrar naquele carro ou buscar o refúgio de casa. Naquele momento, ela precisava decidir entre continuar vivendo à sua maneira ou se enquadrar em todas aquelas regras e limites que teria que aceitar pra compartilhar sua vida com outra pessoa. Enfim, ela teria que responder agora o pedido feito há alguns meses atrás: - Casa comigo?

Literalmente, a hora era decisiva. A hora. Enquanto com a mão direita limpava as marcas deixadas pelas lágrimas em seu rosto, olhou o relógio no pulso esquerdo. 23:44 hs.

P.S.: Esse texto foi escrito a partir de um desafio proposto por Léo Mandoki Jr. (http://leomandoki.blogspot.com/2008/12/quantas-vidas-cabem-antes-do-ponteiro.html).


9 comentários:

Maria Clarinda disse...

E ficou muito bom!!!!Parabéns!

Anônimo disse...

me deparei com esse filme em cartaz que nem vi ainda:

A Lista - Você Está Livre Hoje?

roteiro: Executivo de Nova Iorque conhece um mundo diferente do seu, com pessoas ricas, bens caros e mulheres fáceis

"a lista"? advinha de quem eu me lembrei? vi que esta em cartaz mas nem sei onde, o fato é que me veio a lembrança e a curiosidade de saber de que lista eles se referem.

quanto ao aniversário do blog te felicito e desejo muitos e muitos anos de vida blogueira. espero que você se faça sempre presente neste blog porque assim me sinto mais próxima de ti já que com estes desencontros da vida é mais dificil nos encontrarmos na ocasião e na hora certa.

vejo que seu circulo de amizades blogueiras, sua teia virtual cresceu, fico feliz por isso, bom saber que tem varias pessoas ao seu redor cuidando de ti e te dando toda a atenção que você merece.

antes que fique piegas demais, eu me despeço, rs

abraços e até uma bela noite serena!

Anônimo disse...

Te disse uma vez que textos perfeitos não permitem comentarios... eis como me encontro,sem palavras...

Quando achar folego pra dizer alguma coisa escrevo aqui...rs

bjin querida

Leo Mandoki, Jr. disse...

1º COMENTARIO: eu nca te contrataria para ser a minha advogada. Vc tem sensibilidade a mais. Sabe aquela historia que diz:
um advogado em fim de carreira e lhe perguntam:
- vc contribuiu para a justiça?
e ele responde:
- qnd eu era novo, perdi causas que deveria ter ganho, agora q estou mais velho ganho causas que deveria perder...logo...ao longo da vida houve justiça.
2º COMENTARIO: vc é sempre recorrente a esa coisa do casamento...já se torna evidente, desde Balzac, a preocupação da mulher dos quase 30 anos.
3º COMENTARIO: vc escreve mto melhor do que eu por uma razão simples: vc é pragmatica. E ao ser pragmatica dispensa adjetivos.

às 23h44 eu estava desejoso de que vc respondesse NÃO, não caso!

Paula Barros disse...

Ficou muito interessante a história.

E fiquei pensando no:

1- deixar para amanhã...
2- encontros que mudam vidas.
3- O que queremos para nossa vida?
4- o simbolismo da resposta do casamento não ter sido dado logo, as dúvidas.

Gosto muito da sua forma de escrever, a narrativa me prende.

Que maravilha ter aceito o desafio e nos presentear com um belo texto.

bom final de semana!

:.tossan® disse...

A tarafa foi cumprida otimamente!
Melhor que todos nós. Parabéns. Bj

Anônimo disse...

U-A-U

Essa expressão poderia resumir meu comentário.

Você é uma excelente narradora, e muito criativa. Envolve a gente na história... Busco isso em mim a muito tempoe não encontro..rs

Você sabe que suas histórias dão para se fazer filmes? Não foge aos roteiros norte-americanos...

Vc é ótima. Devia se revelar, se é que não faz isso, mas devia buscar desvirtuar um pouco o direito e buscar algum caminho na literatura, já pensou em escrever um livro?

Pragmática.

Beeijo:)


Dia 12 entro de férias, e daí vcs nao vao em aguentar no blogXD

Aqui, sabe de Melia?

Juliana disse...

ADOREI o texto
achei que ela iria se apaixonar pelo tal cara do carro
adoro essas coisas loucas, de conhecer o verdadeiro amor ao acaso!
perfeito!

beijoss

Ana Luísa disse...

O desafio foi mto bem realizado
;D