Inimiga íntima

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O dia internacional da mulher, assim como todas as datas significativas, acabou sendo transformado em um momento muito mais comercial do que de reflexão ou de ação. A mídia nos bombardeia com informações, muitos aproveitam a data festiva pra comemorar (mesmo sem saber exatamente o que) e as vendas de flores, chocolates e outros mimos são alavancadas.

Assim como nos outros anos, algumas pessoas gentis correram pra me desejar o seu "Feliz Dia da Mulher!!!" e eu, com cara de caneca, ia respondendo um "Obrigada." aqui, um "Pra você também." ali, mas uma história não me saía da cabeça.

Uma menina de 9 anos foi estuprada pelo padrasto dentro de casa. Até aí nenhuma novidade. Isso acontece aos montes por esse país afora. Acontece que desse estupro surgiu uma gravidez, o que também não é algo inédito. Só que o cenário não está completo. A menina de 9 anos, estuprada pelo padrasto, engravidou de gêmeos, e como seu corpo ainda não estava preparado para tal gestação, a criança corria sério risco de morrer. A solução óbvia é tomada, interromper a gravidez.

Tais fatos, por si só, já serviriam de pano de fundo pra uma longa reflexão acerca da situação atual da mulher. O agressor morava na mesma casa da menina. O agressor tinha um relacionamento amoroso com a mãe de sua vítima. Que tipo de marido era esse homem? Será que a mãe ficou cega por vulnerablidade econômica ou psicológica? Quantas vítimas há nessa história?

Muitos questionamentos, uma única certeza. Este é mais um caso em que o inimigo mora ao lado, mais exatamente no quarto ao lado. Mas ele (o agressor) não é o único inimigo íntimo dessa história que, aliás, ainda não chegou ao fim.

A Igreja Católica, através do arcebispo de Recife e Olinda, excomungou a mãe da menina e toda a equipe médica que realizou o aborto. Justificando sua atitude, o arcebispo alegou que a situação estava prevista nas normas da Igreja como motivadora de excomunhão e, se não o fizesse, estaria pecando por omissão.

Obviamente, diversos setores da sociedade saíram em defesa da decisão de salvar a vida da menina. E o arcebispo, alegando estar tentando conscientizar a população, passou a dar diversas declarações, uma mais estapafúrdia que a outra, até que acabou por dizer que o "crime" cometido pelos médicos foi mais grave que o crime cometido pelo padrasto. É isso, o padrasto que violentou a enteada de 9 anos pecou menos que os médicos que salvaram a vida da menina.

Li e ouvi a notícia várias vezes, em diversos meios de comunicação. E muito me surpreendeu o fato de que em nenhuma delas alguém ligasse o triste acontecimento ao dia internacional da mulher. Talvez fazer essa ligação seja decorrência de um hábito patológico de alguém que não sabe apenas curtir as "vitórias" femininas e ficar feliz pelos agrados recebidos. Pode ser mesmo. Mas, na minha cabeça, a ligação foi automática.

Pra mim, está muito claro que essa história traz em si diversas questões bem pertinentes nesse momento. Aspectos religiosos, sociológicos, culturais, políticos, poderiam ser levantados. Poderíamos discutir as relações de poder que vêm sendo escondidas embaixo de pesadas batinas. Mas, vou me ater a um aspecto mais "emocional" da questão.

Obviamente, a mulher atual já conseguiu se libertar de muitos dos grilhões que lhe prendiam as pernas. Entretanto, a batalha mais dura é para desamarrar os delicados e sutis laços que ataram nas nossas cabeças.

Brigar contra as imposições dos outros, contra um adversário concreto, feio e com um bafo quente que nos causa náusea é quase instintivo. Mas o dia internacional da mulher será mesmo só um momento de comemoração quando vencermos os fantasmas, os espectros, aquilo que por vezes nem conseguimos ver. É realmente muito difícil lutar contra algo que nos convenceram de que fomos nós que escolhemos. O inimigo é mais íntimo do que se pode supor.

16 comentários:

Paula Barros disse...

Com certeza que é mais íntimo. Bem mais íntimo.

Vou tentar ir por partes:

- algumas matérias relacionaram o caso com o dia da mulher;
- todos que conheço e as notícias que tenho conhecimento é que mesmo os católicos não estão de acordo com a atitude do arcebispo;
- este arcebispo é detestado por muitos, conhecido por perseguir padres com ideias mais modernas;
- sempre questiono a questão da violência ´física e moral, como um caso a se trabalhar as questões psicológicas da mulher. Para que saiba dizer não, quando for necessário, para não se submeter a determinada situações, e isso indepentede muitas vezes da situação sócio-econômica.

Exemplo: No domingo (dia da mulher), conversei com uma amiga, assistente social, trabalhando em hospital que atende violência contra as mulheres, trabalhando em outro hospital com pessoas distúrbios psicológicos, promovendo o bem estar, a conscientização, e me disse que sofrer violência moral do marido há 25 anos sem conseguir se impor, sem conseguir dizer basta, sem sair da relação.

Sabe o que acontece nas maiorias dos casos de violência contra a mulher? Ela ainda se culpa.

O tema é longo....

abraços.

Carla disse...

um post perfeito...porque o dia da mulher deve servir para pensar em tudo isto
beijos

Unknown disse...

Voltando aos poucos...

mas será que uma criança de 9 anos é mulher? mesmo que seja capaz de fecundar um filho?

o que é ser mulher? é ter um corpo de mulher? é ser do sexo feminino? é ser capaz de gerar um filho?

as cenas cotidianas embora esdruxulas nos fazem pensar paradoxos conceituais.

fora de contexto:

meus interlocutores me ensinam realmente a viver, vou lendo aqui e ali cada traço e construindo meu próprio retalho minha própria força de tecer a vida me alimentando da linha e do manuseio dos outros...rs

espero que vc se acalme, espero que vc tenha tempo. tô falando mal de vc por ai e não tô gosto nem um pouco de fazer isso.

delete aqui depois. please!

Luciana Horta disse...

Todo dia é dia de tudo e de todos...
O calendário marca dias e não emoções!
Gostei muito da sua colocação neste post. Eu não acompanehi este caso, até porque não tenho o hábito de ver TV e nem de ler jornais. Já perdi tempo demais com isso... QUando vejo alguma coisa na TV pode estar certa que se trata de um programa bem ligth!
Mas, voltando ao caso, nem tudo é Simples Assim... A única coisa que sinto é uma vontade de pegar esta criança de 9 anos e colocá-la em meus braços para contar estórias de criança...

Bom, quero muito te agradecer pelos comentários que têm feito lá no Catadora de Palavras. Me emociono com seu humor e com sua cumplicidade!
Você é sempre bem vinda!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Com carinho da LUiA

Ava disse...

Fiqui impressionada com esse caso.
É mais uma daquelas situações estapafúrdias que a gente asssite de boca aberta.
E pior, não apare ninguém, que tenha voz ativa, para dar um basta, um chega pralá em um sujeito desses, que na pela de um Arcebispo, comete tanta asneira junta...
É lamentável!

Abraços

Cadinho RoCo disse...

A Igreja Católica assumiu posição adversa ao que legitima o espírito cristão, estou convencido disso como cristão que sou e com minha formação totalmente cunhada na Igreja Católica. Não pertenço a outra igreja e o tratamento dado à criança de nove anos e pessoas que agiram para salvar sua vida foi por demais indigno e direi até perverso, fora de toda e qualquer relação que faço com a beleza e grandeza do Cristo que veio ao mundo para nos salvar exatamente do que assumiu o bispo respaldado por sua autoridade tal como agiram os senhores da lei apontados por Cristo como hipócritas. Não me limito à dignidade da mulher, vou além, alerto para a dignidade humana e deixo aqui minha solidariedade às suas palavras de repúdio. E tem mais. Para quem não sabe, o catolicismo não é e nem nunca foi religião, é pratica adotada por uma instituição identificada como Igreja Católica. Sou cristão, confesso minha fé em Cristo, na Santíssima Trindade, no Pai todo poderoso e no poder supremo de Maria que aceitou concepção para que esse tipo de coisa fosse tratado pela via do perdão e não da culpa apontada pelo bispo fundamentalista e limitado a um formalismo tacanho. Perdoe-o Pai, ele não sabe o que faz.
Cadinho RoCo

:.tossan® disse...

Realmente você fez uma narrativa que foge da mesmice de todos os blogs que fizeram homenagens vazias. Dia Internacional da Mulher: pouca coisa para comemorar.
Mais uma vez Bravíssimo! Beijo

Anônimo disse...

e se isso aqui tudo tem a ver com impressões, talvez seja relevante essa reportagem aqui:

"Cientistas descobrem como se formam primeiras impressões dos outros"

" As primeiras impressões que surgem logo que alguém conhece outra pessoa se formam em duas áreas do cérebro: a amídala cerebral e o córtex cingular posterior.
A avaliação dos outros requer um processamento complexo da informação, mas o ser humano é capaz de formar em poucos minutos uma primeira opinião de uma pessoa que acaba de conhecer.
Com a mesma informação, as pessoas podem diferir na criação de sua primeira impressão de outro indivíduo.
Os cientistas chegaram a esta conclusão após analisar, com técnicas de imagem de ressonância magnética funcional, o cérebro de pessoas às quais foi pedido que explicassem as primeiras impressões que tinham de indivíduos.
Seus julgamentos se basearam em simples descrições das ações dos indivíduos aos quais se acabava de "conhecer", metade positivas e metade negativas.
Os participantes consideraram toda a informação que dispunham e explicaram sua percepção positiva ou negativa sobre os indivíduos."

Fonte: http://br.noticias.yahoo.com/s/08032009/40/saude-cientistas-descobrem-se-formam-impressoes.html

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

obrigada pelo comentário em Arte cemiterial.
Desejo a você um bom final de semana.
Apareça por lá.

Anônimo disse...

No primeiro dia em que li esse post e soube dessa noticia só quis escrever uma frase:

"Os homens só serão livres quando o ultimo padre for enforcado com as tripas do ultimo rei"

Forte não? rs

Cris_do_Brasil disse...

Vejo que é importante lembrar que as mulheres, sem poder se equiparar em força bruta aos homens, devem ser respeitadas.

Agora, só acho que às vezes as celebrações que surgem por essa época parecem até idolatrar a mulher como semi-deusas, quase como dizem que teria sido na época das cavernas.

Acho isso exagero, não temos nada de muito mais especial que os homens, o problema todo é que numa sociedade em que valorize as características masculinas, acaba que as mulheres se valham desses recursos de auto-exaltação para se sentirem valorizadas.

Na verdade eu acabo até por não gostar desse dia. Sempre ficam exaltando o que deveriam ser as características da mulher, às vezes elas não combinam comigo e não acho que deixo de ser mulher por conta disso, apenas acabo desejando até que não o fosse, pra não ter que ver olhares de espanto em pessoas que tem uma cabeça muito obtusa.

Zunnnn disse...

O que seria pra uma pessoa virar pra outra e dizer que o que ela sempre acreditou ser verdade era pura fantasia?

Ps: pessoas gentis que correram pra te agradar? rs

Bill Falcão disse...

Pois é, Dani! Por isso, sou tão crítico em relação a essas datas todas que nos empurram goela abaixo, como se fossem "normais".
Juntar o 8 de março com o caso da menina mostra bem o que eu penso.
Sim, vitórias vieram nos últimos 40anos, mas nós ainda temos pela frente seres asquerosos, idiotas e cretinos como esse arcebispo, que excomunga todo mundo, menos o estuprador.
Lei estranha essa desse pilantra, você não acha?
Bjoooooooooooooooo!!!!!!!!!!!!

:.tossan® disse...

Fiz um link com um texto seu. Espero que goste! Beijo

http://amigosnablogosfera.blogspot.com/ue

Ester disse...

Brilhante esse texto, de uma lucidez desconcertante..

prazer em conhecer!