O pé do coelho que não saiu do Cartola

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O alarme do celular havia começado a tocar quando a bateria acabou. Ainda dormia, mas a consciência (que nunca dorme) me lembrou da sorte que foi a bateria não ter acabado antes. Afinal, eu não podia acordar atrasada denovo. Tinha que, ao menos, tomar um café forte e fazer uma maquiagem mais ou menos descente. Enfim, eu tinha que estar vestida, preparada e disposta às 8 da manhã. Eu tinha muitas coisas. Mas quem é que pode ser tantas coisas a essa hora? Você? Sorte a sua. Mas eu não sou você, eu sou a doida varrida que torceu o nariz pra sorte do alarme ter tocado antes da bateria acabar, virou pro canto e dormiu mais meia hora. Às 7 e meia dei um pulo como se alguém (deve ter sido a consciência que nunca dorme) tivesse me empurrado pra fora da cama.

Correria. Agora eu tinha meia hora (ironicamente, o mesmo tempo de sono a mais) pra tomar banho, me vestir, tomar o café e sair. Não preciso dizer, não é? O café ficou pra próxima. As duas primeiras tarefas tomaram todo o tempo que eu tinha e ainda fiquei devendo uns cinco minutos. Saí de casa com a incômoda sensação de que os sapatos pretos ficariam melhores.

É nesse momento que você pergunta. Mas você gastou meia hora pra tomar banho e se arrumar? Óbviooooo. Sou mulher, lembra? Escolher uma roupa não é assim a tarefa-mais-fácil-desse-mundo. Ah, está bom, eu confesso. Entre o banho e a roupa, eu liguei a TV pra ouvir as notícias animadoras que mais uma vez renovariam minha fé no ser humano e me fariam começar o dia mais confiante, aquelas mesmo tipo a derrubada à bala de um helicóptero pelos traficantes, a maior taxação da poupança, a polícia que rouba os ladrões que tinham acabado de matar pra roubar o que a polícia mais adiante lhes roubaria. Aquelas notícias que retratam perfeitamente como a nossa vida é bela.

Mas, voltando ao assunto, liguei a TV e a Record News passava um vídeo de Beth Carvalho cantando Folhas Secas há trezentos e cinquenta e dois anos atrás. Gente, juro, foi mais forte que eu. Tive que parar pra ver. Pensem comigo, era Cartola, era o início de um dia em que fui acordada pelo alarme do celular antes da bateria acabar. Devia ser um sinal de sorte, afinal, o coelho sai da cartola e o pé dele é ou não é um talismã? Está bom, não era um sinal tão bom assim. O dia foi longo, as reuniões intermináveis, o café (aquele que eu não tomei pra ver o vídeo) foi tomado na hora do almoço.

Não podia ser diferente. Naquele mesmo dia, bem no meio da mais chata e inútil das reuniões (já falei sobre a minha teoria da inutilidade das reuniões?), a consciência (a insone) gritou aos meus ouvidos.

- Sem querer ser desagradável, preciso te dizer uma coisa. Folhas Secas não é do Cartola. É uma composição do Nelson Cavaquinho e, se não me engano, do Guilherme Brito.

- Eu desconfiei desde o início. Este não estava mesmo parecendo um dia de sorte.

- O que você queria? Ganhar na loteria, uma viagem pra Marte, um princípe encantado montado num cavalo branco?

- Pode ser um princípe encantado, montado numa nave espacial, pra me levar a uma viagem a Marte, em comemoração por eu ter ganho na loteria? rs

- Muito engraçada. O fato é que hoje é um dia comum, você tomou café na hora do almoço e provavelmente almoçará na hora do jantar, tudo porque não acorda na hora em que deveria e ainda se dá ao luxo de ficar vendo TV. Pare de divagações inúteis e preste atenção no seu trabalho.

- Estava demorando. A consciência estava permissiva demais pra ser verdade. Ei, consciência, me diz uma coisa. Você nunca dorme mesmo?

- Nunca.

- E o que você faz enquanto eu durmo?

- Vigio seus sonhos.

- Mas isso não é justo. Os sonhos deveriam ser território livre.

- Não há territórios livres de consciência, minha cara. Essa é a sina de vocês, tolos seres humanos, destacados dos demais por sua racionalidade. Mas, não vou cair nessa sua armadilha de quinta. Vá trabalhar.

- Só mais uma pergunta, vai.

- Só uma.

- Já ouviu dizer que cavaquinhos são amuletos em algum desses lugares exóticos pelo mundo afora?

- Boa tentativa, mas pra mim, não existe mundo afora. Existe mundo adentro. Dentro de você. Já é trabalho suficiente. Até mais.

E assim a consciência deu por encerrada a conversa e meu suposto dia de sorte. É isso. Ela frustra minhas mais doces ilusões, me persegue até nos sonhos e quando eu quero conversar, resolve se calar. Cala-se mas não vai embora, nem nunca, nunca dorme.

11 comentários:

Kari disse...

Adorei!

Estava com saudade desses contos longos...

E sabe que ás vezes eu só queria mesmo é que a consciência dormisse um pouco... Sei lá... Ás vezes cansa.... heheheh

Beijão

~*Rebeca*~ disse...

A graça de ter um blog é ter a oportunidade de ler verdadeiras lições de vida. A sua é sempre lembrada por mim, Dani. Sempre que estou com amigas e falamos em blogs, cito a provação que Deus te fez passar. Um exemplo a ser seguido, admirado por todos que tem o prazer de fazer parte do seu cotidiano.


Um beijo, um abraço e um cheiro, menina linda que mora no meu coração.

Rebeca

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Barbara disse...

Relaxa e fica "embaixo de uma mangueira, pensando na minha escola, e nos poetas da minha estação primeira, não sei quantas vezes..."

Mário Liz disse...

eu já tive um dia de sorte. E ele começou como todos os meus dias normais: - nossa, a cama está tão gostosa ... bem que eu poderia dormir um pouco mais.

E o pior é que esta maldita soneira só me acomete em dias de semana.

Nos feriados e finais de semana eu acordo disposto e bem cedo ... vou ao mercado tomar um café e comer um pastel de *farinha de milho ... e logo após já tomo uma cerveja. É claro, respeitando o lapso temporal das 10:00 da manhã. Alcool, só após às 10:00 rs ...


eu também ligo a TV para saber das notícias matinais. Adoro os jornais regionais...

Viver no interior é algo mágico!

Parece que há menos distância, não territorial, mas entre as pessoas.

É por isso que uma das capitais que eu mais gosto é BH ... BH ainda guarda um pouco daquela aproximação interiorana.


Mas ... e o meu dia de sorte ????

Pois é ... meu dia de sorte é continuar vivo.

Viver é uma mágica estranha e intensa.

E mesmo a rotina tem lá suas paixões.


Sabe, o que mais gosto nos seus textos é o fato de haver muito de mim neles ... e essa é a impressão de todas as pessoas que passam por aqui: é o verbo estar ... a vida está por aqui...


ah, sim ... deixa eu explicar a nota de rodapé:


* pastel de farinha de milho é uma exclusividade aqui de Pouso Alegre, sul de Minas Gerais. É bão demais, sô.


Me perdoe a falta de conexão com as palavras ... é que hoje é domingo com cara de sábado... e amanhã será um domingo com cara de segunda.


ah sim ... eu estou meio bêbado. acabo de voltar de um sítio ...



abraço forte


mariolizpoeta@gmail.com

Tiago Med disse...

nem sempre é simples assim não
é mesmo...?
É Dani, não é? rs...
Eu descobri o blog por acaso, como quase tudo na vida. Confesso, que pouco explorei do seu universo, mas adorei o pouco que já li e espero continuar conhecendo mais... e você, por favor continue viajando, simples assim... adorei!
Voltando aos seu comentário,se a sinceridade do meu relato conquistou parte da sua admiração, só tenho a agradecer pelo seu carinho e dizer que também me alegro em conhecer pessoas assim como eu: autênticas!
É verdade que nem tudo é fantasia por aqui, mas também nem tudo é verídico, posso afirmar que é tudo verdade, real, como tu mesmo definiu, aconteceu, de alguma forma é real, como os sonhos nas nossas cabeças, ou será que são no coração?

Kaká Bullon disse...

Adorei!!! rs
Esses dias mesmo estava justamente pensando no aprisionamento em que vivemos com relação a nossa consciência... nem todo mundo, claro, pois conheço de perto pessoas que tiveram a sorte (ou não) de ter uma consciência quase muda. Mais sorte do que não, na minha opnião, porque esse modo de "por trás dos olhos, se ver vendo", estar sempre com a consciencia alerta, nos faz deixar muitas coisas que poderiam transformar muitos de nossos dias em dias de sorte mesmo. Também acho injusto! Dentro da gente devia ser tudo território livre. Fora a gente já se condiciona tanto...

Você fala a minha língua!

Beijos, flor!

:.tossan® disse...

Sabe de uma coisa? não quero muito papo com a minha cosciêcia não, ela com os anos se tornou muito chata, rotineira e rude comigo, por isso rompemos por hora.
É sempre assim, quando te leio me arrancas um sorriso que me faz bem.
A leitura é deliciosa. Beijo

Abraão Vitoriano disse...

Sensível é você!

que gostoso retrato do cotodiano, e tantos instantes minha consciência me proibe de viver o doce da vida. o que é perder uma dia de aula para ficar sozinho lendo um bom livro ou filme? o que é faltar a reunião quanto você está diante do amor, e precisa-se de tempo para cuidar de si para impressionar mais tarde.?
no preparo do bolo, ele desncansa quando está quente, se não, além de queimar a boca, pode dar "buxo inchado"...
(exemplo bobo) rs

e eu preciso de trégua, colocar minha cabeça nas nuvens, tenho esse direito!

sobre você,
quero dizer que muito me agrada todas as suas manifestações no meu blog, adoro seus comentários, é uma espécie de vida em palavras, o que não é pra todo mundo, você é fascinante!
quero que a partir de agora, nossa amizade seja cultivada, e posso ter lindas flores como filhas...

muito obrigado,
e um beijo...

- começo a gostar e sentir mais-

do homem-menino

Mário Liz disse...

"O fato é que hoje é um dia comum, você tomou café na hora do almoço e provavelmente almoçará na hora do jantar, tudo porque não acorda na hora em que deveria e ainda se dá ao luxo de ficar vendo TV. Pare de divagações inúteis e preste atenção no seu trabalho."


benditas sejam as divagações inúteis! Porque delas é formada o reino da Terra (não quero entrar no transcendentalismo de céu e inferno).

Das divagações inúteis nascem os humoristas de palco, nascem também os humoristas por omissão (os políticos) e os humoristas por ação (os legisladores).

cada um usa suas divagações inúteis como bem entende.

e vc é ótima quando divaga preenchendo seus espaços vagos com letras e culatras ...


bjão

Auíri Au disse...

Estou preso na consciência.
Queria dormir e acordar sem ela..
Beijos

Paula Barros disse...

Que maravilha de texto. Agora ficarei mais tranquila, porque entenderei a minha consciência. Principalmente quando ela estiver com crise de consciência.

E quando ela quiser falar bobagens (minha consciência tem muitas vozes, as sua também?) eu não vou escutar. Ficarei calada e sorrindo dela.

beijos, adorei.