Heróis e heróis...

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Um dos significados de crescer poderia ser "reconstruir relações", isto porque crescer fundamentalmente é rever as relações que se tem consigo mesmo e com as pessoas.

Consigo mesmo porque é impossível crescer sem mudar a forma de lidar com nossas questões, sonhos e conflitos.
Quando criança, é quase natural olhar pra si mesmo de frente, de olhos arregalados, sem medo do que verá. Diante dos problemas, correr pra "barra da saia" da mãe, além de instintivo, é uma atitude até, de certa forma, incentivada por todos. Olhamos pros nossos sonhos assim como pra um dia de céu claro.
Passar para vida adulta implica em transformar sonhos em metas, planos, descer à terra firme que sediará o que antes ficava muito bem nas nuvens. Olhar pra si mesmo passa a ser uma tarefa mais complexa, há que se colocar uma lupa pra conseguir perceber cada detalhe e meandros de nosso próprio sentir e pensar.

E essa mudança na forma de encarar a si mesmo acaba levando, naturalmente (nem sempre tão naturalmente assim... rs), a uma mudança na forma de lidar com as pessoas que nos rodeiam. As relações tornam-se mais "rotuláveis", mais complexas, mas também mais amplas.

A amizade entre duas crianças é algo extremamente doce, profundo, intenso até, pode se perpetuar e, mesmo que isso não aconteça, cria laços e lembranças que, normalmente, farão parte da pessoa que você se tornará. Mas uma criança não consegue perceber totalmente como é seu "amiguinho", não consegue ver todos os seus defeitos, aliás nem todas as suas qualidades. Uma criança foca sua visão só na convivência, se ela é boa, a amizade dura, se não é, a criança apenas deixa de lado a tal pessoa desagradável. Essa visão é muito mais simples, cômoda até, evita embates e conflitos. Só que temos que convir que perceber todos (ou muitos) os defeitos de um amigo torna essa amizade muito mais "ampla", mais completa e interessante também. Você gosta daquela pessoa apesar dela não ser tão boazinha assim, convive com ela apesar da convivência não ser tão tranqüila, entra em embates e discussões que podem ser doloridas, mas, muitas vezes, te farão uma pessoa melhor, de olhos mais abertos.
E o namoro entre adolescentes. Vamos combinar que ele é muito mais "cinematográfico" que uma relação adulta, isso o torna mais emocionante, mas também mais superficial. Ora, uma adolescente, em geral, olha pro seu amado como pra um príncipe (com cavalo branco e tudo) e isso é uma ilusão. Ao crescer, vai percebendo que o tal príncipe está mais pra sapo, mas que ela também não é bem aquela princesinha que quis supor. Ambos são feitos de carne e osso e vão aprendendo a se relacionar como tal, pessoas comuns, com defeitos e qualidades, lados bons e obscuros. E essa relação, se resistir à "verdade", certamente será mais profunda do que era na adolescência.
Entretanto, não há relação que se transforme mais quando passamos à vida adulta que a relação com nossos pais.
Quando criança, olhamos pros pais como para nossos super-heróis prediletos. Não enxergamos fraquezas, muito menos mesquinharias, tudo neles parece forte, louvável, correto e grandioso. Alguns defeitos eles até "esfregam" nas nossas caras, mas não enxergamos, aliás nem desconfiamos que eles existam.
Os anos vão passando, a visão se amplia e parece que um dia, sem mais nem menos, todas as luzes são acesas e percebemos de repente que nossos pais são pessoas comuns, com coisas que nos agradam e coisas que nos irritam. Ah, que decepção! A princípio é normal que nos sintamos enganados, traídos: - Como essas pessoas me enganaram por tanto tempo?
Esse momento de decepção pode deixar seqüelas na relação de um filho com seus pais. Alguns acabam se detendo na posição de vítima enganada e esquecendo de olhar de frente essas pessoas que acabaram de conhecer. Mas, em muitos, acredito que na maioria dos casos (eterna otimista), o filho olha e percebe que seus pais têm defeitos sim e isso os faz melhor ainda.
Ora, quem é perfeito obviamente será bom pai, quem não tem "maldade" só poderá tratar um filho com amor mesmo. Só que ao perceber que seus pais têm sim vários defeitos, você percebe também que o fato de eles terem sido tão desprendidos, terem muitas vezes aberto mão de suas próprias vontades pra priorizar o bem estar dos filhos, enfim, o fato de terem te amado tanto é ainda mais incrível e maravilhoso.
E é nesse dia, no dia em que vemos nossos pais como efetivamente são, que descobrimos uma nova forma de nos relacionar com essas pessoas. Óbvio que ainda não é uma relação como as outras, é claro que ainda não deixamos totalmente de olhar pra eles com uma certa "fantasia" (de heróis, às vezes de bandidos), mas ainda assim, a relação fica mais verdadeira e, conseqüentemente, mais "ampla".
Daí um dia saímos de casa, vamos viver nossas vidas bem longe dos "domínios" de nossos pais e de repente percebemos que não precisamos mais suportar essa convivência. Agora a vida nos dá o poder da escolha. Todavia, a gratidão é tão profunda, a amizade tão grande e, acima de tudo, a admiração é tão motivada que cada momento compartilhado, cada palavra trocada e cada novo traço de personalidade que percebemos mais solidificam essa relação.
E num momento qualquer, na hora de um sorriso, de uma lágrima, de uma palavra, percebemos sim que estamos diante de super-heróis. Por que não têm defeitos? Não!!!!! Porque o respeito e a admiração que sentimos são tão profundos, o amor tão intenso, que temos certeza de que só heróis poderiam despertar tais sentimentos no nosso (tão cheio de defeitos) coração.

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