Amor maltrapilho

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A tarde estava quente. Uma preguiça a consumia. Mas ficar trancada em casa também não estava nos seus planos. Abriu a janela e ficou ali, brincando de descobrir animais, pessoas e coisas nas nuvens brancas que ornavam o céu azul. Encontrou um cachorro com cabeça de papagaio. Abriu um largo sorriso enquanto seus olhos passeavam pela rua em busca de outra ocupação. Encontrou.

Ela o encontrou. Ele vinha caminhando, passos lentos, cabeça baixa, como se analisasse o caminho antes de cada passo. Ela também analisava. Seu objeto de interesse era ele, seus gestos, suas roupas, seu semblante.

De repente, ele levantou o rosto e a encarou. Pêga de surpresa, ela instantaneamente corou, mas não baixou o rosto. Olhou-o bem nos olhos e sorriu. Agora foi ele que se surpreendeu, ensaiou um arremedo de sorriso, o único de que ainda era capaz. Continuou a andar, mas os passos ficaram ainda mais lentos. Os olhos, por um motivo que ele desconhecia, não queriam se despregar daquela janela. Uma janela para a alma.

Os olhos. Ela nunca havia visto um olhar tão cansado. Nos olhos dele ela podia ver o tempo. Nos olhos dele ela podia ver o mundo. Havia muita coisa além dos muros de sua casa, das brincadeiras de criança.

Criança. Ela ainda era uma menina. A pureza que havia naqueles olhos o fizeram perceber que ele nunca havia sido realmente criança. Ele nascera cansado, marcado. Justamente por isso, ele gostava ainda mais dela. Cada detalhe, seu rosto redondo e luminoso feito lua cheia, suas mãos miúdas. Um aceno.

Ele continuava andando, iria embora. Talvez ela nunca mais o visse. Sem disfarçar a frustração que sentia, ela acenou. Ele estava escapando e ela sabia que havia tanto ainda a descobrir. Ela amava descobertas, surpresas. Amava.

Amor. Ele buscou pela última vez aquele olhar antes de virar a esquina. Ela ainda estava lá. O aceno parado no ar. Ele arriscou mais um sorriso meio torto enquanto pensava naquela menina desconhecida. Ela era apenas uma criança, mas o que ela o fez sentir foi o sentimento mais próximo de amor que ele havia conhecido.

Conhecido. Ela não sabia o nome daquele homem de roupas rasgadas e sujas. Não sabia onde era sua casa, desconfiava até de que ele não a possuía. Provavelmente nunca mais o veria. Mas ela o conhecia. Ela não o esqueceria.

Ele não esqueceria. Naquela tarde ensolarada, ela lhe dera mais coisas a lembrar do que o resto do mundo durante toda uma vida. Um olhar, um sorriso, o primeiro amor.

10 comentários:

Leo Mandoki, Jr. disse...

é estranho isso não é?!...as vzs nos cruzamos com pessoas nas ruas e sentimos algo forte...uma identificação imediata...algo que a gente pensa assim: «eu poderia amar aquela pessoa» e no entanto é apenas um cruzar de olhares...é algo bastante misterioso!
essa tua história narra mto bem isso...mas tem algo a favor...ela não sabe quem é ele e se algum dia o verá outra vz...mas ELE já sabe onde ELA mora...e se ele sentiu o mesmo...ele regressará...e poderá desenvolver uma observação obsessiva para a janela dela...
um beijo!

Anônimo disse...

se pequenas coisas tão belas quanto um belo e pequeno olhar como os trocados entre este casal fizessem sempre parte de pequenos instantes de prazer, poderiamos colecionar um "mundo" de coisas a descobrir e apreciar todos os dias como se fossem pedras raras guardadas numa caixinha bem decorada cheia de sentimentos.

mas eis que a vida pede pressa e fatalmente não temos tempo de nós (humanos) nos olharmos nos olhos, nos descobrir e nos conhecer, e conseuentemente não temos tempo de descobrir que fixar de um olhar pode haver um "mundo" maravilhoso ainda por ser descoberto e curtido como uma paisagem inabitada em qualquer lugar perdido e desconhecido.

viajei, tô ensaiando um retorno que não vem tão cedo ou demora-se pra chegar, quem eu devo culpar? o destino ou minha pressa que me impede de chegar? eis minha filosofia barata de hoje, rs

bjs

saudades

Anônimo disse...

É isso mesmo, Dani. Quando você escreve um texto ele deixa de ser seu e passa a ser do leitor. A primeira impressão é mesmo de um amor à primeira vista entre uma garota e um homem. A sutileza dos seus textos não deixa com que as coisas fiquem tão claras assim. É demais você esperar que todos percebam que o texto se trata de uma criança de 10 anos enamorada por um mendigo e um mendigo amando uma menina. Melhor assim você ia acabar chocando seus leitores. hehehe

:.tossan® disse...

Nos tempos de janela, quando existia ainda janelas baixas acontecia com quase todas as moças da época, pergunte a elas. E com os rapazes também me pergunte. É uma empatia tão grande. Mas é como o sol e a lua podem se ver mas não se tocam.
No caso do texto é diferente, são pessoas distintas...
Mais uma vez vou ser repetitivo: Lindo e comovente o teu texto!

Matheus Pedroza disse...

Eu nao gosto de comentar porque parece algo meio pedante tentar adivinhar ou entender o que a pessoa quis dizer com a história. Pelo que vi cada um viu o texto de uma maneira meio diferente e pra falar a verdade eu não entendi de maneira nenhuma. Não procuro mais entender as pessoas. Mas tenho a sensação de que eu não sou o único maluco na terra a tentar me ocupar com algo tentando esquecer da vida, tentando ter alguns momentos de prazer, tentando fugir da realidade.

Ahh sei la.

bjos

Candy disse...

Amor, sempre ele. Nas horas menos esperadas e nos momentos nos quais nunca imaginaríamos que ele apareceria.
Isso sim é amor!
^^

:*

Leo Mandoki, Jr. disse...

vc tem um paciente pra vc em um dos comentarios...isso nao vale...usar blog pra ganhar dinheiro nao!!

Anônimo disse...

ah... nem tão dificil entender o texto...e facil demais se apaixonar por uma menina que ainda enxerga animais em nuvens...rs
La vinha ele,os passos cansados,o sol latejante...buscava no chão da cidade e na paisagem do caminho teu destino quando,por acidente,descobriu de longe a expressão inocente da menina que tentava entender o que o céu lhe dizia em figuras disformes num céu azul...foi pego de surpresa pelo olhar dela,e com a timidez que só quando se percebe estar apaixonado se tem,olhou pro chão,quem sabe pra esconder o sorriso que se nutria ainda da lembrança fresca daquele sorriso tão puro...
Quem sabe...

Teus textos me inspiram,sabia? percebo que estimulam em mim algo que não posso pôr em pratica tão bem sozinho:me fazem sonhar.

bjin querida

Melia Azedarach L. disse...

As vezes quando estou no metrô e vejo alguém passar e cruzamos um olhar, posso sentir se já o vi antes, em algum lugar, de outra vida talvez, de outro pedaço meu que morreu quando renasci sendo essa que sou...Isso pode ser a maior dádiva que temos quando olhamos nos olhos.Por isso escondemos nosso olhar, nossa alma, nesse medo de que nos reconheçam.
Beijos querida, você como sempre me fez pensar.
Hoje só postei algo para você rir, coisa tola de momento,só para não passar em branco, mas estou tão cansada.
Um grande beijo.

danisita disse...

eu achei lindo o texto. Acho que eu espero por isso. Estar andando na rua e de repente encontrar 'aquela pessoa', assim, do nada. (:

um beijo querida ;*